segunda-feira, novembro 21, 2005

Sobre cores e homens

Antes daquele dia, a coisa que eu mais tinha medo era de trovões. Gostava de ver os raios rasgando o céu em noites chuvosas, reluzindo suas raízes luminosas sobre o cinza escuro das nuvens, porém, o barulho que eles faziam me apavorava. Tinha apenas nove anos naquela época. O mundo então se apresentava como um paraíso, formado por verdes e azuis e laranjas e vermelhos, tonalidades que se encaixavam perfeitamente à minha volta, enquanto eu solto na mata, acelerado, desvendava do meu jeito os mistérios guardados ali. Meu sorriso não me largava. Dispunha de ar suficiente para meus pulmões, comida para minha fome e carinho para meus lamentos de menino. Minha verdade era o cerco das árvores, o canto dos pássaros, o raiar e o pôr do sol. Apesar de traquino, nada me projetava para depois do horizonte. Ao meu ver, tudo acabava naquela linha onde limitavam meus olhos. Eu era o mais novo da família, seis filhos ao todo, duas mulheres e quatro homens. Um deles, já adulto feito, meu ídolo, era forte, sobretudo generoso e divertido. Sobre meus semelhantes eu sabia que vivíamos e morríamos por ali mesmo, felizes, em nossa pacata vila - uma aldeia erguida às margens de um gigantesco rio. Apesar da rusticidade do lugar, nada nos faltava. E não poderia ser diferente, pois de braços abertos nos acolhia uma natureza generosa e farta, extravagante em caprichos de fauna e de flora. Não buscávamos entendimento, mas sentíamos que essas forças naturais eram uma continuação do bem-estar instalado instintivamente em nossas vidas. Um círculo vivo, onde existir era um entretenimento intenso e harmonioso. Quando bem felizes, costume da nossa família, saíamos para um passeio matinal. Rumávamos oeste numa trilha por entre as árvores, até o ponto em que o oceano surgia diante de nós. Vinte quilômetros num passo de conversa e chegávamos em pouco tempo. Logo se espalhava uma imensidão de areia fina e ondas verde-azuladas, ambas tomadas pelo cheiro de sal e vida. Nem sinal de cansaço. Tudo em seu lugar. Poucos metros à minha frente seguia meu pai, homem de poucas palavras, mas de olhares repletos de carinhos. Anos depois, eu tentaria congelar essa imagem nas minhas lembranças, ele me olhando, dizendo todo amor que não sabia usar em palavras, mas com a mesma rapidez que me vinha, isso se apagava. Foi num dia de sol, quando pela última vez, ele me fitou seu carinho de genitor. Tínhamos acabado de chegar à praia. Neste dia, estávamos eu, ele e dois dos meus irmãos. Sorríamos, jogávamos areia uns nos outros, corríamos a criar brincadeiras sem regras, duelando com a força das águas. Subitamente, saíram vários homens do mar, vestidos com roupas estranhas, e agarraram meu pai e meu irmão mais velho. Ficamos tão assustados que não esperamos para conferir o que aconteceria depois. Entramos na mata e fomos contar o ocorrido ao povo da aldeia. Para nossa surpresa, havia dezenas desses invasores lá também, e já tinham levado muitos dos nossos amigos e parentes. Minha mãe e outras mulheres estavam ajoelhadas, implorando que eles deixassem seus maridos e filhos em paz, não adiantava, os desconhecidos estavam determinados a levá-los - concluí, escondido por trás de uns arbustos. Nossa harmonia foi violentada. As pessoas gritavam, corriam para o nada. Vi quando aqueles desconhecidos assassinaram alguns aldeões que resistiam à prisão. Naquela manhã, eu perdi meu pai, meu irmão, cinco tios e um avô. Corri para mata, subi na minha árvore preferida e de lá não saí até anoitecer. Chorei tudo que um garoto de nove anos sabe chorar. Logo depois em casa, de cara com o olhar vazio dos meus irmãos, percebi que nossas vidas tinham sido partidas ao meio. Essa dor cavou um abismo no peito dos moradores da aldeia, onde muitos caíram e não mais retornaram. Eu mesmo enterrei naquele oco, o paraíso que eu pensava do mundo. Lembrei-me dos trovões, de como eles me apavoravam, nada comparado ao estrago causado por aqueles desconhecidos em meu mundo. A verdadeira ameaça - deduzi - tinha pele branca e saía do mar. Ninguém soube explicar o que aconteceu naquela manhã. Perguntei uma, duas, três e cem vezes, contudo, o que tinham de resposta era uma cabeça baixa, escondendo o semblante de desonra e tristeza. Calei minha dúvida e cresci, enquanto desbotavam minhas lembranças, deixando mais distantes o paraíso enterrado e o olhar cheio de palavras do meu pai. Agora, meu corpo todo de rapaz era alvo dos olhares femininos, e também eu, já andava de olho grudado numa linda moça. Não demorou e juntamos nossos desejos numa só direção. Construímos uma família. Geramos três filhos. Eu, assim como meu pai, endereçava-lhes o velho olhar dos sentimentos que não se sabe dizer, e também meus meninos, eles entendiam, isso era idioma silencioso, mas nos confortava. Concluí, vendo-os crescer que a felicidade estava retornando à minha vida. Retirei do baú o velho sorriso de criança, e ele funcionou. Traço torto, que algum tempo depois se fechou para sempre. Isso foi num fim de tarde: Os invasores do passado retornaram à nossa aldeia. Levaram-me para o mar. Dessa vez não dispensaram nossas mulheres. Vi quando dois homens agarraram a mãe dos meus filhos e arrastaram-na pelos cabelos. Também eles foram levados. Para onde? Por que aqueles homens nos prendiam? Finalmente eu teria a resposta. E foi no interior de um navio, acorrentado, que comecei a entender toda história: eles nos levavam para suas terras, e lá trabalharíamos até morrer, sem receber nada em troca. Destino trágico, ninguém sob o céu a nos defender - desabafei silencioso. Nunca mais vi minha mulher e meus filhos. Era a repetição daquilo que experimentara anos antes, quando levaram meu pai. Dor insustentável, senhores, ninguém imagina algo assim: centenas de homens acorrentados, chorando suas perdas, lágrimas silenciosas caídas no chão empoeirado do navio. Dos vinte e dois aos sessenta e sete anos, trabalhei naquelas terras desconhecidas. Ao longo do cansaço da minha vida, coisa que se arrastou em meados do século XVII, vi muitos como eu serem açoitados até a morte. Outros, eu vi morrer de tristeza ou de doença desconhecida. Crueldade, meus senhores, em todos os níveis, isso eu testemunhei. Comíamos restos de comida, e dormíamos em ambientes úmidos, frios e sujos. Os nossos supostos donos nos tratavam como animais. Eu fui vítima de uma gripe, doença para a qual não tinha preparado meu organismo. E não resisti, ela me levou deste mundo. Saibam que não tive o prazer de rever nenhum parente meu antes disso. Descansei do meu castigo de viver. Não obstante, permaneceu o sofrimento do meu povo naquelas terras desconhecidas. Essa monstruosidade intitulada ‘tráfico de escravos’ durou cerca de quatro séculos. Dizem os estudiosos das dores da minha gente, que aqueles invasores, gente branca, batizada como cristã, levou mais de dez milhões de seres humanos do continente africano, amputando-os de suas terras para serem transformados em escravos. E esse processo todo aleijou a nossa descendência, jogando pelo ralo as tradições, os costumes e cultura do nosso povo. Não bastasse isso, ainda tínhamos que sofrer um tenebroso racismo por parte daqueles que nos tiraram da nossa terra. Houve ainda aqueles de sorrisos nas faces, que nos invadiam as aldeias para impor, sem sutilezas, uma crença que não era nossa, com objetivos que certamente interessavam muito mais a eles mesmos. Nós morremos em tudo isso, meus senhores. É, eu não vivi para ver como estariam meus irmãos negros no futuro. Fiquei de longe, desejando que alguém tivesse um instante só de clarividência e nos resgatasse desse mal - nosso paraíso seria restaurado, liberdade enfim. Contudo, independente desse milagre, percebo que nos abafando a luz aqui, noutro ponto brilharemos. Foi assim que sobrevivemos nesses séculos de escravidão e dor. Sempre segregados daquilo que a sociedade decretava como decente e cabível. Hoje, apesar de todas as feridas e remendos em nossas almas, somos o samba e o carnaval no Brasil, nascemos reggae na Jamaica, gospel, espiritual, soul, funk e rap nos Estados Unidos, temos o drible do futebol, medalhas de maratona, incontáveis pódios na vida cotidiana, nós dançamos, nós cantamos, e, em tudo que trilhamos, suplicamos ao Deus-único, sem raça, sem cor, que nos livre da intolerância, da injustiça e do racismo. Não almejamos bajulações ou recompensas, buscamos, sobretudo, igualdade e respeito. Nós fomos felizes um dia, e de certa forma, sabemos ser à nossa maneira. Quando alguém lhes perguntar por que falar da nossa gente, por que levar um pouco da nossa cultura para os colégios e teatros, contem a minha triste história, que é verídica. Talvez possa tocar seu coração. Relatem como roubaram meu pai, minha mulher e meus filhos... ninguém saberá como eu chorei, mas certamente terá uma vaga idéia de como se deu essa crueldade. Lembrem-se, foram dez milhões de negros roubados de suas verdades - dez milhões de tragédias semelhantes. ______________________________.....___________________________________ Ricardo Fabião (23 de abril de 2005)

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